ICMS/MG: A indevida exigência de regime especial das transportadoras rodoviárias de cargas

Se sua empresa é transportadora rodoviária de cargas, apura o ICMS pelo débito/crédito e tem sede ou filial em Minas Gerais, provavelmente já teve de lidar com a obtenção e renovação anual do regime especial para creditamento do imposto destacado nas notas fiscais de aquisição, em substituição ao crédito presumido de 20%. Se nunca requereu o regime especial, sinto lhe dizer, mas você está na mira do Fisco.

É preciso ressaltar, porém, que a exigência de regime especial para a apuração do ICMS pelo débito/crédito é clara, aberta e cristalinamente inconstitucional, como demonstraremos a seguir, vício que tem sido reconhecido pelo Poder Judiciário em diversas ações judiciais. É lamentável que o contribuinte tenha de ser forçado a judicializar uma questão grosseiramente incompatível com a Constituição.

A Fazenda Mineira tenta caracterizar a exigência de regime especial como mera formalidade, alegando que bastaria ao contribuinte requerê-lo. Todavia, não é bem assim, pois essa exigência gera uma série de consequências, desde custos indevidos (taxa de renovação anual de valor elevado), restrições de direitos (hipóteses de vedação ao regime especial) e inconsistências de tributação (ausência de uniformidade nacional), neste último caso, especialmente para os contribuintes com estabelecimentos em mais de um estado.

A regra constitucional que disciplina a não cumulatividade do ICMS, prevista no art. 155, § 2º, inciso I, não deixa margem para dúvida quanto ao valor passível de creditamento nas aquisições. É o montante cobrado na operação anterior, destacado em documento fiscal.

O direito de apurar o ICMS dessa forma é uma garantia constitucional, de modo que o Estado não pode impor forma diferente de apuração. Qualquer desvio desse modelo só pode ocorrer por opção do contribuinte, nunca por imposição estatal. Os regimes especiais de tributação - como o próprio nome indica - são exceções à regra, concedidos a pedido do contribuinte.

A esse respeito, destaco trecho do voto do relator do acórdão no Agravo Regimental no RE 595.723, em que foi destacado o seguinte, acerca do ICMS apurado no âmbito do Simples Nacional (que também é um regime especial de tributação):

O emprego da técnica da não cumulatividade não é um direito absoluto nem irrenunciável. Cabe ao contribuinte exercer a faculdade de não escriturar créditos provenientes de operações anteriores quando tal óbice for exigência para fruir de outras hipóteses de desoneração que, a seu talante, sejam mais favoráveis.

O crédito presumido - em lugar do crédito destacado na nota - é tratado pela Constituição Federal como uma das maneiras de se conceder benefício fiscal, motivo porque precisa ser autorizado pelo CONFAZ (art. 155, § 2º, inciso XII, alínea “g”).

A deliberação do CONFAZ que autorizou o crédito presumido das transportadoras foi veiculada no Convênio ICMS 106/96, que desenhou o benefício com as seguintes características:

a) é opcional para o contribuinte;

b) veda o aproveitamento de quaisquer outros créditos;

c) deve ser observado por todos os estabelecimentos do contribuinte no território nacional.

Por cerca de 10 anos, Minas Gerais seguiu o parâmetro estabelecido no Convênio, mas, em 2006, resolveu alterar a sistemática unicamente para o setor de transporte rodoviário de cargas - lembrando que o Convênio mencionado disciplina a apuração para todo o setor de transportes, exceto o aéreo, que é tratado em convênio distinto.

E o que fez o Estado? Inseriu, por padrão, todos os contribuintes do setor na sistemática do crédito presumido e estabeleceu que aquele que quiser apurar pelo débito/crédito deve requerer regime especial. O sistema de crédito presumido deixou de ser opt-in para se tornar opt-out.

A novidade foi trazida pelo Decreto Estadual nº. 44.253/2006, pois não houve sequer uma lei que autorizasse o Poder Executivo a fazer isso. Há flagrante violação ao Convênio ICMS 106/96, que não autoriza essa inversão, muito menos a Constituição.

Modais abrangidos pelo Convênio ICMS 106_96.jpg

A consequência é que a garantia dada ao contribuinte pela Constituição passou a ser tratada como exceção, conferida de forma condicionada pela autoridade tributária, em regime especial.

Os regimes especiais em MG têm validade anual e não podem ser concedidos se sócio, gerente ou diretor tiverem sido denunciados por crime contra a ordem tributária (ainda que não tenha relação com a empresa) e se a empresa tiver débitos em aberto com o Fisco Estadual.

Se a empresa incide nessas duas situações - o que não é difícil, especialmente quanto à existência de débitos -, ela não só é automaticamente inserida no crédito presumido, como também não tem como dele sair. Essas situações são verificadas anualmente, pois, os regimes especiais devem ser renovados, o que enseja o pagamento da Taxa de Controle e Manutenção de Regime Especial, que é de 607 UFEMGS (R$ 2.252,94 em 2020).

Para as empresas sediadas em outros estados e que estabelecem filial em MG, a situação pode ser ainda pior, especialmente para aquelas que, por razões operacionais, não quiseram optar pelo crédito presumido e incorrem nas situações impeditivas de concessão de regime especial. Nesse caso, não haverá a uniformidade nacional da tributação, prevista no Convênio ICMS 106/96.

O que tem acontecido, então, com as empresas que, sem regime especial, têm apurado o ICMS pelo débito/crédito? Têm sido autuadas de forma rigorosa. Basicamente, exige-se multa isolada de 50% dos créditos aproveitados indevidamente, isto é, os créditos escriturados, o que faz com que a multa possa atingir montantes absurdos.

A título de exemplo, uma empresa que tenha escriturado créditos equivalentes a 30% de sua prestação de serviços ficará sujeita a uma multa de nada menos do que 15% do seu faturamento, sem falar na diferença de imposto devido (10% que excede o crédito presumido de 20%), com acréscimo de multa de revalidação de 50% dessa diferença. No final das contas, o contribuinte arcará com uma exigência fiscal no montante de 30% de seu faturamento, o que pode simplesmente inviabilizar a continuidade das atividades.

Dentre vários, o acórdão seguinte, da 1ª Câmara de Julgamento do Conselho de Contribuintes/MG, é exemplar do entendimento manifestado pelo Fisco Estadual, em questão envolvendo contribuinte com sede no Estado de São Paulo e que veio a estabelecer filial em Minas Gerais:

PRESTAÇÃO DE SERVIÇO DE TRANSPORTE RODOVIÁRIO/CARGA - CRÉDITO DE ICMS – APROVEITAMENTO INDEVIDO - APURAÇÃO POR DÉBITO/CRÉDITO – FALTA DE REGIME ESPECIAL. Constatada a apuração do ICMS pelo sistema de débito/crédito, em desacordo com o previsto no art. 75, inciso XXIX, alínea “a” do RICMS/02, que estabelece o crédito presumido. A apuração pelo regime de débito/crédito, está condicionada à concessão do regime especial, previsto no § 12 do citado dispositivo. Infração caracterizada. Corretas as exigências de ICMS, Multa de Revalidação capitulada no art. 56, inciso II e Multa Isolada prevista no art. 55, inciso XXVI ambos da Lei nº 6.763/75. Lançamento procedente. Decisão unânime.

(Acórdão 23.418/19/1ª, 1ª Câmara de Julgamentos, Conselho de Contribuintes, julgado em 15/10/2019)

Essa situação, porém, tem sido afastada pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, que, sem exceção, tem reconhecido a inconstitucionalidade da exigência de regime especial para apuração pelo débito/crédito e, como consequência, anulado as autuações fiscais.

Nesse sentido, confira-se, por todos, o precedente a seguir:

REEXAME NECESSÁRIO - APELAÇÃO CÍVEL - MANDADO DE SEGURANÇA - TRIBUTÁRIO - EMPRESA PRESTADORA DE SERVIÇOS DE TRANSPORTE - ICMS - SISTEMA DE CRÉDITO E DÉBITO - REGRA - SISTEMA DE CRÉDITO PRESUMIDO - OPÇÃO DO CONTRIBUINTE - SEGURANÇA CONCEDIDA - SENTENÇA CONFIRMADA - RECURSO VOLUNTÁRIO DESPROVIDO. 1. De acordo com a Constituição da República, em seu art. 155, II, § 2º, o ICMS é um imposto não cumulativo que utiliza para o seu cálculo o sistema de substituição tributária crédito e débito. 2. O crédito presumido nas prestações de serviço de transporte foi introduzido no ordenamento jurídico brasileiro por força do Convênio n° 106/96, celebrado entre o Ministério da Fazenda e os Estados federados, sendo adotado, opcionalmente, pelo contribuinte. 3. O Decreto Estadual nº 43.080/02, ao instituir o sistema de crédito tributário como regra e o sistema de crédito e débito como opção do contribuinte, contrariou o princípio da não-cumulatividade assegurada pela Constituição da República. Ademais, o referido Decreto é norma regulamentadora, não podendo alterar a lei que trata especificamente do ICMS, sob pena de violação ao princípio da reserva legal.

(TJMG - Ap Cível/Rem Necessária 1.0000.17.078311-2/001, Relator(a): Des.(a) Hilda Teixeira da Costa , 2ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 27/03/0018, publicação da súmula em 03/04/2018)

Por ora, não há outro caminho a seguir senão a judicialização, de modo que os contribuintes devem ficar atentos a exigências fiscais como esta, especialmente porque o Judiciário tem dado resposta adequada. Mesmo nos casos em que houve autuação e parcelamento do débito, é possível anular judicialmente a autuação e reaver o que foi pago, pois trata-se de questão jurídica que não é afetada pela confissão de dívida realizada quando da adesão a parcelamento, entendimento já pacificado pelo STJ em recurso repetitivo.

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RODRIGO RODRIGUES DE FARIAS

Advogado tributarista especialista em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC/MG, com extensão em Planejamento Tributário pelo IBMEC/RJ, Direito Societário pela Fundação Getúlio Vargas - FGV e Falência e Recuperação de Empresas, também pela Fundação Getúlio Vargas - FGV. Tem artigos publicados na imprensa especializada e experiência em matéria tributária tanto no âmbito operacional como no judicial. Inscrito na OAB/MG sob o nº. 205.912. Acesse o perfil no LinkedIn e saiba mais.